Esse artigo trata
de pornografia. Em particular, examina algumas de suas interfaces
com o feminismo. Se essas foram práticas sociais tomadas,
inicialmente, como expressões antagônicas, sobretudo,
em cenários culturais atravessados pelo puritanismo, hoje
assistimos a criação de um erotismo politicamente
correto protagonizado por atores ligados à defesa das minorias
sexuais. A discussão que se segue, além de situar
o debate que envolve a emergência dessa nova face do erotismo,
indica suas implicações mais imediatas: de um lado,
o deslocamento do sentido de transgressão do erotismo para
um significado cada vez mais associado ao cuidado saudável
do corpo e para o fortalecimento do self; de outro, uma
espécie de neutralização ou domesticação
dos traços e conteúdos violentos envolvidos em práticas
sado-masoquistas.
É sugestivo tomar de empréstimo – como um ponto
de partida – a definição de pornografia (2)
aceita e difundida entre os experts dedicados à
caracterização desses materiais: expressões
escritas ou visuais que apresentam, sob a forma realista, o comportamento
genital ou sexual com a intenção deliberada de violar
tabus morais e sociais (3). Essa
noção da pornografia como transgressão a convenções
morais sancionadas está presente em obras de autores, como
Pietro Aretino, desde o século XVI e condensa, segundo os
historiadores do tema, o sentido moderno desse tipo de representação
(4). Ainda é limitado
o exame dos efeitos dessa tradição no que concerne
à problemática de gênero. E, mesmo que essa
investigação não seja o objeto deste artigo,
vale salientar que essa concepção do erotismo como
transgressão às convenções morais é
perpassada pelo posicionamento da relação masculino/feminino
a partir de uma díade entre ativo e passivo (5).
Essa singular representação que associa prazer a
violar o "instituído" socialmente é, na
minha hipótese geral, vigorosa ainda hoje e ilustra os casos
tão diversificados de escolha e identidade sexual.
Mas, fica uma questão: trata-se de saber porque, nessa dissolução,
cabe ao corpo "feminizado" o lugar da violação.
Tal corpo pode ser o da mulher, mas também pode ser o do
homem, desde que submetido a uma re-simbolização que
o dote com sentido feminino. Esse aspecto do problema esteve em
destaque em um debate acalorado nos Estados Unidos entre, de um
lado, feministas que organizaram o movimento anti-pornografia e,
de outro, feministas que se posicionaram como “anti-puritanas”,
abrindo novos campos de reflexão sobre minorias sexuais.
Examinar a literatura que dá base a esse debate interessa,
sobretudo, pela articulação proposta pelos interlocutores
de cada um dos lados do embate entre violência e erotismo
e cujas implicações são, no mínimo,
intrigantes.
O final dos anos setenta representa um momento particularmente
significativo na história do ativismo feminista americano
cujos efeitos resultaram uma re-configuração do campo
teórico (6). Em meio à
ameaça da retomada da moralidade tradicional por intervenção
da New Right (7), aparecem
no cenário político feminista grupos com posições
antagônicas. Em 1976 é criado o Women Against Violence
in Pornography and Media, em 1979 o Women Against Pornography;
e, em 1978, nasce o Samois (primeiro grupo lésbico sado-masoquista).
Interessante notar que a reação ao moralismo de “direita”
fez emergir, paradoxalmente, de um lado, um moralismo feminista
anti-sexo protagonizado pelo movimento contra a pornografia –
não menos normatizador do que a retórica que caracterizava
a New Right. De outro lado, houve contraposição
dentro da comunidade lésbica na tentativa de legitimar apostas
e alternativas sexuais como o sado-masoquismo, desafiando a máxima
de que jogos de dominação submissão apenas
constituem as relações heterossexuais.
Os grupos anti-pornografia - que fazem parte do que os estudiosos
do campo denominam como feminismo radical (Fergunson
1984) – eram compostos por mulheres identificadas com
uma parcela da comunidade feminista lésbica que não
apenas rejeitava o sexo heterossexual por uma questão de
escolha sexual, mas como conseqüência de uma leitura
particularmente determinística sobre a dinâmica de
poder das relações heterossexuais. Catharine Mackinnon
(8)– a autora considerada
um dos avatares do feminismo radical – apresenta uma análise
das relações sexuais como sendo estruturadas pela
subordinação de tal modo que os atos de dominação
sexual constituem o significado social do “homem”, e
a condição de submissão o significado social
da “mulher”. Esse determinismo rígido, segundo
Judith Butler (1997), traz, pelo menos, duas
implicações: em primeiro lugar, a noção
de que toda relação de poder é uma relação
de dominação, toda relação de gênero,
pois, só pode ser interpretada por esse crivo; implica também
a justaposição da sexualidade ao gênero - entendido
a partir de posições rígidas e simplificadas
do poder - associando-o, sem maior exame, ao “homem”
e à “mulher”. O feminismo radical hasteou sua
bandeira contra instituições heterossexuais, como
a pornografia, tomando-a como um exemplar da violência e do
perigo contra as mulheres. Além da pornografia, o movimento
definiu outros alvos: o sado-masoquismo, a prostituição,
a pedofilia, a promiscuidade sexual. Importante assinalar a aliança
desse movimento aos grupos feministas que atuavam contra a violência,
causando impacto considerável na arena política e
teórica do feminismo.
No início da década de oitenta, dada a imensa visibilidade
pública do feminismo radical, vozes saídas do campo
feminista, mas também da comunidade lésbica, ensaiaram
o contra-ataque. Nelas avistamos toda a discussão travada
pelas vertentes críticas ao essencialismo que caracterizava
o discurso sobre a opressão desde a década de setenta.
Uma confêrencia realizada no Bernard College em Nova York,
em 1982, deu início a essas novas perspectivas, reunindo
feministas heterossexuais e lésbicas que apoiavam e tomavam
como objeto de reflexão as alternativas sexuais que implicam
o prazer dos parceiros, inclusive, aquelas práticas que estavam
sob alvo das feministas radicais. Os resultados da Conferência
foram publicados por Carol Vance no livro Pleasure
and Danger. Esse livro representa um marco importante no
campo, pois ele problematiza e recusa a associação
da sexualidade aos modelos coercitivos de dominação,
assim como, a articulação desses modelos a posições
estáticas de gênero em um mapa totalizante da subordinação
patriarcal. Vindo da tradição feminista em favor da
liberdade sexual – que reuniu, além do ativismo, scholars
de várias origens disciplinares – Carol Vance criou,
a meu ver, uma “convenção” sobre o erotismo
que organiza parte considerável das atuações
e reflexões do feminismo contemporâneo, assim como,
ajudou a consolidar um novo campo de pensamento na crítica
cultural – as Queer Theories (9).
Tal “convenção” implica a idéia
de que a liberdade sexual da mulher constitui prazer e perigo. Perigo
na medida em que é importante ter em mente aspectos como
o estupro, abuso e espancamento como fenômenos irrefutáveis
envolvidas no exercício da sexualidade. Prazer porque há,
no limite, uma promessa no erotismo e na busca de novas alternativas
eróticas em transgredir as restrições impostas
à sexualidade quando tomada apenas como exercício
de reprodução. Se essa “convenção”
amplia, inegavelmente, a discussão sobre a problemática
do prazer há ainda, em contrapartida, uma tendência
a dissociar o prazer do perigo, tomando-os como resultados em separado
sem examinar os nexos que estão articulando os dois termos
assinalados. Essas novas perspectivas criaram, ao evitar cair no
determinismo rígido e simplificador do feminismo radical,
uma armadilha, quando não um ardil: uma ênfase em uma
concepção de prazer cujo significado não foi
inteiramente problematizado em termos sociais e históricos,
resultando em uma aposta de que ele traz em si uma força
liberadora, desde que submetido ao consentimento entre parceiros.
O “lado” do perigo foi tratado de modo simples como
se o consentimento, como um mero ato de vontade, garantisse sua
tradução em prazer. Nessa transposição
ou passagem, restou entre parêntesis o problema da violência.
No sentido de esclarecer essas artimanhas no desenvolvimento da
discussão feminista, voltemos ao debate.
Gayle Rubin afirma, em artigo que consta da coletânea de
Carol Vance, que a relação entre o sexo e o feminismo
sempre foi complexa. E o é pelo fato da sexualidade ser o
nexo da relação entre gêneros e muito da opressão
nascer, ser medida e se constituir a partir dela. Dessa complexidade,
derivam as duas tendências já assinaladas: uma que
concebe a liberação sexual como mera extensão
dos privilégios masculinos - essa linha criou toda a retórica
anti-pornográfica (10).
Outra tendência é a de crítica às restrições
do comportamento sexual das mulheres, ligada a todo o movimento
de liberação sexual dos anos sessenta. Essa linha
criou e tem produzido estudos e práticas inovadoras relativas
ao prazer e escolhas sexuais. A relevância do artigo “Thinking
Sex” de Rubin, segundo Judith Butler,
se deve ao fato dela ali ter salientado que o feminismo não
é o único discurso - ou o mais apropriado - a tratar
das relações de poder formadas e reguladas pela sexualidade
(11). Esse “feminismo”
criticado por Rubin é aquele constituído pelas teorias
de Catharine Mackinnon e, em particular, a noção de
que a modelação, a direção e a expressão
da sexualidade organizam a sociedade em dois sexos, mulher e homem.
Para Rubin, as relações sexuais não podem ser
reduzidas às posições de gênero. A inter-relação
sexualidade-gênero não pode ser tomada pelo prisma
da causalidade, nem ser fixada como necessária em todos os
casos. Nesse sentido, ela passa a adotar uma posição
de aliança com as minorias sexuais, distanciando-se do ativismo
feminista radical e propõe uma nova conceituação.
Nela, a autora apresenta elementos descritivos e teóricos
para pensar a sexualidade e elabora a noção de que
os atos, práticas e escolhas sexuais nas sociedades ocidentais
modernas se realizam no interior de um sistema hierárquico
de valorização sexual (“sexual value system”).
Nele, a sexualidade considerada normal é a que se exercita
em meio às relações heterossexuais firmadas
em matrimônio, visando a reprodução. A esse
padrão, seguem outras situações escalonadas
na hierarquia valorativa, em posição decrescente:
casais heterossexuais monogâmicos não casados; solteiros
com vida sexual ativa; casais estáveis de gays e lésbicas;
gays solteiros sem vida promíscua; gays solteiros com vida
promíscua; fetichistas; S/M (sado-masoquistas); posições
não masculinas ou femininas (travestis, drag queens etc);
sexo pago; sexo inter-geracional (em particular, o que se dá
entre adultos e menores de idade). Estes últimos comportamentos
estão na base do sistema, condenados a uma desvalorização
sistemática, quando não são – como no
caso da pedofilia - objeto de punição judiciária.
Interessante notar que Rubin, nesse artigo, associa as diferentes
práticas do seu sistema ao que chama de minorias sexuais.
Um procedimento analítico que já associa a escolha
sexual à constituição de identidades coletivas.
Seja pela capacidade de segmentação tão característica
da sociedade americana, seja pelo esforço da autora de dar
legitimidade política aos praticantes do sexo socialmente
não valorizado, o fato é que, a partir desse marco,
um novo campo de teorias se abre no cenário, trazendo novas
e intrigantes contribuições. Intrigantes porque, ao
examinar no detalhe a produção sobre sexualidade na
década de 90 – principalmente nos Estados Unidos -,
salta aos olhos a quantidade de estudos relativos às práticas
sado-masoquistas, fetichistas etc entre pessoas do mesmo sexo.
Mesmo que Gayle Rubin tenha tentado deslocar a proeminência
do feminismo como discursividade exclusiva a tratar da sexualidade
e de deixar sugerido que é preciso garantir a flexibilidade
de olhares para dar conta de um conjunto mais diverso de minorias
sexuais, é de notar a visibilidade e a notoriedade que os
escritos gays e lésbicos ganharam nas últimas duas
décadas. Há o reconhecimento na bibliografia de que
tais estudos não apenas colocaram a público um tratamento
mais sistemático das realidades empíricas vividas
por populações homossexuais, como trazem contribuições
teóricas para pensar os efeitos mais fundos do modelo heterossexual.
Em particular, chamo atenção para a discussão
no campo feminista sobre sexualidades heterodoxas com uma clara
tendência em dar ênfase aos fenômenos e práticas
relativos ao campo do lesbianismo. De fato, boa parte dos escritos
críticos e do debate teórico apresenta essas duas
vertentes: a primeira delas trata a questão do desejo na
linha da teoria da objetificação do corpo feminino
- vertente que tem como exemplo as campanhas contra a pornografia;
a segunda vertente critica a demonização da sexualidade
pressuposta pela teoria da objetificação, porém,
situa e circunscreve toda a discussão, tomando como ponto
de partida e como ponto de chegada o desejo feminino presente em
relações mulher/mulher.
Há uma clara delimitação do debate a esse
conjunto de relações humanas. Relações
que ainda supõem uma dose presumível de equidade.
Como se para pensar sobre alternativas e perversões sexuais
só fosse possível para relações cuja
base de fundo pressupõe uma simetria. Como se por se tratarem
de pessoas do mesmo sexo, o consentimento já fosse garantido
de antemão e a violência e o perigo transpostos para
a arena dos prazeres. Exagero na crítica ou não, há
de fato nessa bibliografia um não tratamento do problema
da violência, ficando este restrito àquele campo do
feminismo radical que procede a uma análise determinística
e rígida.
Essa é uma hipótese que tenho construído,
a partir não apenas da leitura do material bibliográfico
sobre o tema, como também é resultante de pesquisa
empírica junto a sex-shops de São Francisco e Berkeley.
Parece haver uma espécie de duplicação entre
essa tendência presente nos desenvolvimentos teóricos
do feminismo – principalmente o das vertentes “pro-sex”
ou “anti-objetificação” – e a abertura
de um campo alternativo no mercado para o sexo. Nele, verifiquei
toda uma série de tentativas que questionam o mercado convencional
do sexo e uma promessa de um “erotismo politicamente correto”,
cujo sentido seria o de transgredir restrições ao
livre exercício da sexualidade. Se práticas sexuais
qualificadas como violentas (S/M e alguns fetichismos) são
condenadas nas relações heterossexuais, nos sex-shops
para gays (lojas nas redondezas da Castro Street) e na Good Vibrations
(sex-shop criado pelas lésbicas em 1975), elas ganham lugar,
visibilidade, aceitação e acessórios.
Sex-Shops
A pesquisa exploratória realizada em alguns sex-shops de
São Francisco e Berkeley representou oportunidade excepcional
para a verificação, senão para o desenvolvimento
de novas hipóteses relativas ao exame da bibliografia recente
que articula teoricamente as questões da violência,
do gênero e do erotismo. São Francisco é uma
cidade que tem ganhado visibilidade internacional, desde a década
de 70, como lugar de maior tolerância para o livre exercício
de escolhas sexuais alternativas. Não só boa parte
dos movimentos libertários teve ali uma de suas mais expoentes
expressões, como parte considerável do pensamento
crítico toma os casos empíricos oriundos da comunidade
gay/lésbica como exemplares para a discussão.
Dentre as várias configurações possíveis
de pesquisa, a escolha desse campo empírico se deu pela potencialidade
que ele apresenta em permitir comparações. Salta aos
olhos do especialista nesses temas, o fato de encontrarmos nessa
cidade experiências relativas a práticas eróticas
bem pouco convencionais.
Sex-shops, locais de acesso comercial aos materiais eróticos,
existem em boa parte dos centros urbanos contemporâneos. A
grande maioria visa o público heterossexual, comercializando
livros, vídeos, acessórios variados (vibradores, roupa
íntima, óleos, bonecos infláveis) concernentes
a um certo modelo do desejo que pressupõe o exercício
de fantasias sexuais, violando - brincando, ou mesmo transgredindo
- todo um conjunto de práticas e símbolos relativos
à experiência sexual socialmente não condenável
(heterossexual e visando a reprodução). Parte-se da
noção de que em um comércio dessa natureza
seja adequado encontrar materiais que acentuem - nas cores, nos
formatos, nos objetos - certas violações ao instituído.
Esse conjunto de elementos simbólicos é variável
histórica, social e geograficamente, contudo, encontramos
no mercado pornográfico um universo restrito de signos, muitos
dos quais convencionados em relação a um estilo particular.
Melhor dizendo: o comércio de objetos e acessórios
sexuais corresponde a um estilo formado por convenções
- que ainda que possam sofrer variações - nada têm
de muito criativas. Muito couro preto, ligas de meia vermelhas,
rendas artificiais, dildos (12)
de tamanhos variados - com certa ênfase no tamanho avantajado
-, imagens de corpos femininos com predominância do tipo ariano
e loiro (preferencialmente, um loiro artificial) e seios firmes
e enormes. Os corpos masculinos predominantemente são dotados
de músculos e dá-se particular ênfase a órgãos
sexuais imensos. Nos vídeos, há ênfase de combinações
ou arranjos sexuais fora do comum, porém também encerrados
em uma fronteira simbólica que visa, no limite, salientar
certos aspectos que são observáveis naquilo que constitui
as relações de gênero - corpos femininos (ou
feminizados quando o suporte corporal é o do homem) são
adornados para configurar o locus da penetração; corpos
masculinos (e não há correspondência ou alternativa
para a masculinização dos corpos de mulheres) são
adornados para configurar o locus do corpo que penetra. O exercício
da sexualidade entre corpos do mesmo sexo tem preponderância
entre mulheres e seu sentido ainda corresponde a uma mesma lógica:
torna-se prática aceita e estimulante de um certo desejo
voyer masculino.
Para além de uma simplificação de natureza
militante, algumas feministas qualificam esses sex-shops e esses
conteúdos e práticas como fazendo parte de um “modelo
hidráulico” do desejo, ou melhor, o desejo como algo
concebido numa relação corporal input/output. No que
concerne à discussão que interessa no momento, esse
modelo tem como pressuposto a noção de que a pornografia
implica a contestação de modos habituais e sancionados
de sexualidade e, mais importante, um modelo no qual a diferença
sexual está baseada na incomensurabilidade e complementariedade
entre, de um lado, o corpo que deseja e, de outro, o corpo que vai
se constituído como objeto do desejo. Resta enfatizar que
o primeiro está configurado, guardadas variações
e arranjos simbólicos diversificados – dentro de um
conjunto de sinais que demarcam simbolicamente o masculino; e o
corpo que se posiciona como objeto do desejo por um conjunto de
sinais que demarcam simbolicamente o feminino.
Os sex-shops pesquisados em São Francisco e Berkeley representam
casos excepcionais e em crítica ou contraste aos sex-shops
convencionais do mercado. Os estabelecimentos gays, não apenas
visam um público não heterossexual, como apresentam
produtos que enfatizam toda uma padronização ou uma
configuração entre corpos e novas alternativas de
desejo entre homens. O sex-shop das lésbicas também
busca outros públicos, ainda que tenha uma proposta menos
sectária. Há nele toda uma retórica e um conjunto
de produtos que busca oferecer alternativas para casais heterossexuais,
gays e lésbicas.
A primeira consideração importante sobre esses sex-shops
é, pois, a construção de um mercado alternativo
ao convencional. Todos os produtos e o conjunto de acessórios
buscam constituir diferenças em relação ao
padrão dos sex-shops. Há todo um esforço de
diferenciação, criando uma espécie de mercado
segmentado que contemple outras escolhas sexuais. Há, nesse
sentido, um claro diálogo entre convenções.
Se os sex-shops convencionais enfatizam nos corpos femininos, seios
e cabelos loiros, nos gays e no lésbico não encontramos
esse tipo de referente. Ainda que tenha realizado pesquisa em diversos
sex-shops gays, irei concentrar a descrição e a análise
no estabelecimento criado pelas lésbicas.
Boas Vibrações
Valencia é uma das ruas perpendiculares à Castro
Street, mais conhecida pelos círculos locais como a rua das
lésbicas. Seguindo a segmentação corrente,
neste "pedaço" do Mission District, distribuem-se
lojas e espaços de afirmação da cultura gay
feminina e feminista. Além de estabelecimentos para tatuar
e colocar “piercings” e de um prédio onde estão
reunidas sedes de várias organizações em defesa
dos direitos da mulher e de homossexuais, está a Good Vibrations.
Sex-shop criado em 1977 por lésbicas sintonizadas com o feminismo
e interessadas em expandir o universo de informações
e alternativas de escolha sexual para um público mais diversificado
(além de mulheres e gays, a loja visa também o público
heterossexual).
Mais do que um entreposto de produtos sexuais, as idealizadoras
do Good Vibrations consideram estar dando curso a uma missão.
Elas partem da premissa de que há mais prazer sexual disponível
do que experiências concretas e, em função disso,
pretendem oferecer acesso a materiais que ajudem a expandir as experiências,
melhorar o nível de informação sobre sexo,
combater o medo, a ignorância, os preconceitos e a insegurança.
Para aqueles que consideram que esse tipo de negócio não
corresponde à agenda feminista, elas replicam: "we believe
that honest communication about sex is a pre requisite to equal
rights both in and out of the bedroom" (Good Vibrations 1994:1).
Acreditam que os principais produtos a venda, os “sex toys”,
são revolucionários: "The idea that pleasure
for pleasure's sake is sufficient motivation for sexual activity,
and that no means of experiencing sexual pleasure is morally, aesthetically
or romantically superior to another, is the subversive philosophy
behind the enjoyment of sex toys." (Good Vibrations 1994:2).
Os “sex toys” não foram concebidos com a perspectiva
de ajudar ou solucionar problemas sexuais. Foram criados para divertir,
por isso são chamados de “toys”. Além
disso, eles são acessíveis ao consumidor médio
e são apresentados com informação cuidadosa
para o consumidor. Um sex-shop politicamente correto, eis a melhor
definição para o Good Vibrations. De certo modo, como
já foi salientado, há uma tentativa clara de diferenciar
esse tipo de negócio no interior do mercado sexual. Mais
do que visar lucro, pretende-se legitimar escolhas mais diversificadas
de exercício sexual, tentando não alimentar esteriótipos
ou reforçar práticas que incorram em objetificação.
Há, de fato, todo um cuidado em domesticar e neutralizar
o sentido de violação que está envolvido no
significado corrente de erotismo. No lugar da violação,
esse tipo de loja introduz, através de todo o seu aparato
de produtos e manuais, uma nova concepção que salienta
o sentido de ginástica e de fortalecimento do self. Há
um esforço claro de integração e não
de subversão. Vejamos.
Primeiro impacto: pelo lado de fora, a loja está pintada
com cores pasteis. Ainda que não se veja o interior - as
portas e janelas são de vidro jateado - nada no exterior
a diferencia de outras lojas circunvizinhas que vendem móveis,
roupas e livros. Ao atravessarmos a porta, a primeira impressão
se confirma: o espaço interno é claro e clean. As
janelas trazem uma iluminação direta que é
ainda mais reluzente em função das paredes amarelas.
Prateleiras de madeira - e uma madeira bem clara - dividem o interior
da loja em setores. Em todas as visitas, encontrei a loja repleta
de gente: casais heterossexuais e homossexuais, muitos jovens, alguns
com tatuagens e de roupa preta, outros bem discretos. Todo mundo
de cara aberta e feliz, manipulando algum aparelhinho, cheirando
algum incenso, vela ou bálsamo, folheando livros. O cheiro
completa o cenário - um leve aroma de sândalo e alfazema
tranqüiliza, conforta.
Por visar um público alternativo, mas que inclui a presença
de mulheres, o feminino é, antes de tudo, matéria
simbólica a ser valorizada. Porém, de modo particular:
indo contra a tudo aquilo que conota o padrão do mercado
convencional, a exposição de corpos de mulheres enfatiza
aquilo que contraria qualquer artificialismo. Posters dispostos
por todas as paredes mostram mulheres mais velhas – e a idade,
antes de constituir objeto degradante, é cuidadosamente apresentado
como algo natural; os corpos não são magros ou gordos,
tampouco eles são torneados por plásticas ou ginástica;
axilas e pernas não são depiladas. Rugas, pelancas,
pelos não são escondidos, antes, fazem parte de corpos
que querem ser sexys. Há uma incorporação de
uma estética claramente hippie, mas articulada a certos significantes
que salientam a sensualidade e a sexualidade. Ali a tendência
é a de tentar associar sensualidade a um corpo não
artificial, dando a impressão de que se quer legitimar uma
nova concepção de sensualidade em uma versão
“politicamente correta”. Nada avilta ou limita –
os jogos eróticos podem ser operados em uma lógica
que, longe de “objetificar” o feminino, busca o conforto,
a mulher comum, uma espécie de democratização
das escolhas, ou melhor, da idéia de que o erotismo é
possível e desejável para todos.
Chama atenção a organização dos elementos.
Do lado esquerdo da loja, está disposta na parede uma infinidade
de dildos de tamanhos e cores variados - liláses, azuis claros,
rosinhas, vermelhos cintilantes... formatos para gostos diversos
- uns mais grossos, outros de menor dimensão -, texturas
que variam entre o látex e o silicone, alguns com o formato
idêntico a um pênis, incluindo saco escrotal, outros
lisos. Uns duros, outros moles. Logo acima deles, estão expostas
cintas para que os dildos possam ser vestidos. Todos são
coloridos, alguns feitos de tecido, outros de couro. Seguindo essa
mesma parede, vão sendo apresentados outros materiais: há
o lugar para os objetos ligados às práticas S/M (13)-
chicotinhos de couro ou de plástico de cores variadas, roupas
de couro ou látex pretas, argolas e algemas; o lugar dos
óleos e bálsamos e lubrificantes; a prateleira dos
vídeos.
No centro da loja, as prateleiras vão ajudando a organizar
a disposição dos produtos. Nelas encontramos os livros
classificados por tipo: livros de ficção erótica,
manuais para práticas diversas (masturbação,
sexo anal, sexo oral), livros de técnicas de massagem, livros
de fotografia e livros diversos sobre como fazer sexo de modo seguro,
incluindo livretos que explicam a diferença - vantagens e
desvantagens - dos óleos e lubrificantes. Impressiona a variedade
e a sofisticação da informação fornecida.
Chama particular atenção a quantidade de manuais.
Há como que uma tentativa explícita de ensinar técnicas
de exercício sexual, com ilustrações e descrições
pormenorizadas sobre os movimentos corporais. Não existem
muitas diferenças entre esses manuais e todos os seus dispositivos
de apresentação das várias técnicas
e os manuais de ginástica. Fontes de uma mesma tradição.
A implicação mais imediata: nesses manuais há
a concepção do corpo moldável pelas técnicas
e dicas para o seu adequado desempenho só que, diferente
dos de ginástica, neles existe a incorporação
de técnicas para fruição sexual. O início
de todos os manuais - sejam eles sobre as práticas S/M ou
para masturbação e uso dos “sex toys”
- apresenta um texto em que há a preocupação
de tornar legítima a prática em questão. O
intento deles é o de desinvestir o caráter transgressor
dos exercícios, descaracterizar o caráter patológico
e perverso dos agentes envolvidos e convidar os leitores a experimentarem
essas formas de sexualidade. Todos eles enfatizam como essa expansão
das fronteiras eróticas reforça a auto-estima das
pessoas, libertando-as de preconceitos e estimulando a imaginação.
Outra prateleira expõe os vibradores. Os formatos são
variados oscilando entre os fálicos (como os dildos) e uns
imensos, com formatos parecidos com microfones ou “mixers”
(aquele eletrodoméstico que mistura bebidas). Um deles parece
uma furadeira elétrica, só que no lugar da broca está
acoplada uma bola de textura confortável. A aproximação
visual com eletrodomésticos parece exacerbar o sentido de
tornar os exercícios sexuais prática rotineira e normal.
Como se os seus designers estivessem sugerindo aos consumidores
que deixem de lado as tarefas domésticas para investirem
no próprio prazer. Ironia ou boutade, essa estética
que sugere uma continuidade com aquilo que caracteriza as tarefas
femininas do lar dá o que pensar. O que se assemelha ao microfone
também é interessante. Como se a ausência da
fala e da voz das mulheres no cenário público estivesse
sendo elaborada criticamente, a partir de uma metáfora irônica,
para salientar a ênfase em uma nova subjetividade caracterizada
pela busca do prazer, da auto-estima, do divertimento.
Peças vistosas - dildos e vibradores. Ali dispostos perdem
todo e qualquer caráter de violação. Intriga
o fato de serem os elementos mais presentes, tanto no sentido quantitativo
como no qualitativo - dada a exuberância de suas formas. Não
é exagerado afirmar que eles são os “sex toys”
preponderantes. O que me faz pensar que nessa nova configuração
do erotismo existe uma ênfase na “genitalidade”.
Uma parte do corpo - os genitais – parece ser o objeto por
excelência dessas sexualidades que se descortinam.
A fragmentação do corpo em partes tem sido tema de
inúmeros estudos. Na maioria das análises, tal fenômeno
corresponde à crescente objetificação do corpo
como resultante da cultura de consumo e das práticas médicas
(Lyon e Barbalet 1994; Csordas
1994). Há também toda a vertente de estudos no
interior das teorias feministas (14)
que dá maior complexidade, a meu ver, às interpretações
que denunciam a objetificação. Uma das vertentes teóricas
do feminismo - aquela que contesta os binarismos mente/corpo, natureza/cultura
e qualquer tipo de abordagem que resulta em essencializar ou substancializar
- o corpo passa a ser considerado corporalidade, algo que adquire
capacidade de ação ou "agency". Essas teorias
estão sendo elaboradas por autoras que buscam entender o
corpo vivido, como é representado e usado em situações
culturais particulares. "Para elas, o corpo não é
nem bruto, nem passivo, mas está entrelaçado a sistemas
de significado, significação e representação
e é constitutivo deles. Por um lado, é um corpo significante
e significado; por outro, é um objeto de sistemas de coerção
social, inscrição legal e trocas sexuais e econômicas"
(Grozs 2000:75). Desconstruir a polaridade
mente/corpo, uma das bases dessa teoria da corporalidade, implica
para essas autoras: tomar a materialidade do corpo para além
das inscrições definidas pelas leis e termos da física,
ou seja, tomar a materialidade como uma continuidade da matéria
orgânica; em seguida, não associar a corporalidade
apenas a um sexo, como na nossa tradição cultural
em que o corpo está associado à mulher, liberando
os homens para os afazeres da mente; recusar modelos singulares
e pensar a corporalidade no interior de um campo plural de alternativas,
misturando sexo, classe, raça, idade numa plêiede de
possibilidades de exercício e de representação.
Enfim, trata-se de uma perspectiva que visa, ao evitar análises
biologizantes ou essencialistas, ver o corpo como lugar ativo (não
passivo e, portanto, produto e gerador) de inscrições
e produções ou constituições sociais,
políticas, culturais e geográficas (Grozs
2000).
Seguindo essas teorias, a ênfase na genitalidade - que me
chama atenção nas alternativas simbólicas desse
“erotismo politicamente correto” - deve ser interpretada
de modo pouco linear. De um lado, há visivelmente uma neutralização
daquelas inscrições que posicionam as corporalidades
segundo sexo, raça, idade etc. Não se trata apenas
de um procedimento que apaga ou põe entre parêntesis
as posições sociais ocupadas pelos sujeitos que portam
o genitais. Antes, trata-se de uma espécie de apagamento
das inscrições de uma corporalidade em que o próprio
desejo ou prazer possa ser elaborado a partir de outras superfícies
ou articulado a outras partes do corpo ou dos corpos envolvidos.
De certo modo, focalizar nos genitais as possibilidades de fruição
tende a obliterar a diferença. De outro lado, é preciso
considerar que, a exemplo da diversidade dos dildos e dos vibradores,
essa nova erótica está permitindo pensar outra qualidade
de diferenças, expandindo ou mesmo explodindo a relação
entre um tipo de corpo (com um sexo, uma cor, uma idade etc.) e
sua correspondente preferência de exercício sexual.
Este é o lado para o qual essas alternativas criam novos
horizontes para a reflexão teórica: não há
correspondência entre a posição do sujeito em
termos sociológicos, de gênero, racial e um tipo modelar
de comportamento ou preferência sexual. O campo se alarga,
ainda que a preço de uma fragmentação. Antes:
a própria fragmentação é empregada como
algo positivo, como uma re-significação que visa a
expansão dos prazeres possíveis e a implosão
de modelos ou da modelagem convencional do comportamento sexual.
Se há essa positividade aberta pela tendência de enfatizar
os genitais nessas práticas, há também, como
vimos a partir dos manuais de sexo, um caráter de funcionalidade
pragmática que está ausente dos casos fornecidos por
outros sex-shops. A todo instante no Good Vibrations o consumidor
está diante de uma postura que celebra o sexo como fonte
de prazer, divertimento e saúde - mental e corporal. Para
alcançar esse objetivo, os produtos são apresentados
com o pragmatismo de uma bula. “Comodification”, não
há dúvida. Contudo, um tipo de mercantilização
que traz associada uma tendência a fortalecer o self, permitindo
um equilíbrio entre mente e corpo. Tais categorias não
estão sendo negadas, antes, trata-se de promover alternativas
para o seu balanceamento funcional e adequado. Essa tendência
fica ainda mais evidente se examinarmos o material a disposição
na loja para os praticantes do sado-masoquismo (S/M).
S/M
"In fact, S/M has nothing
to do with coercion, either sexual or non sexual. The common denomination
in all S/M play is not a violent exchange of pain but a consensual
exchange of power" (Good Vibrations 1994:210)
Tal definição contesta as noções usuais
sobre sado-masoquismo, inclusive a conceituação presente
no dicionário, que tomam a prática seja como uma perversão
de ordem sexual, seja como algo que descreve uma dinâmica
entre pessoas envolvidas em comportamento coercitivo ou abusivo.
O contra-discurso fornecido acentua, ao contrário, que S/M
é um jogo erótico de poder e não um abuso físico
ou emocional. E re-conceitua essa alternativa em sintonia com os
participantes de grupos organizados de S/M que preferem adotar outras
expressões para designá-la: jogos dominação/submissão,
sensualidade e “mutualidade”, mágica sexual,
sexo radical ou jogo de poder e confiança. Esses grupos têm
o cuidado de, em suas palestras e workshops, divulgar a necessidade
das práticas S/M se darem em meio a um contexto de segurança
e estruturado a partir da negociação e comunicação
entre as pessoas envolvidas: "The botton line is, you can´t
dominate your partner unless he or she allows you to take control,
and you can´t submit to your partner unless he or she accepts
control" (Good Vibrations 1994:211).
Na tentativa de legitimar o sado-masoquismo como alternativa erótica
aceitável, o caráter de violência que a ele
está associado é substituído pela conotação
de um jogo consensual entre parceiros que brincam com os conteúdos
e exercícios ligados a posições de dominação
e de submissão. Os chicotes coloridos e as cenas nos vídeos
reforçam essa tendência. Tudo parece estar sendo cuidadosamente
montado para encenar uma situação que simula a violência,
mas que, simultaneamente, a afasta ou neutraliza. A dor não
faz parte dessa encenação, assim como o subjugo real
ou concreto. E essa simulação vai sendo montada, a
partir de fantasias sexuais. Trata-se, de fato, de encenações
quase teatrais e privadas de duas naturezas distintas de fantasias:
de um lado, as fantasias de ser dominado e subjugado por sequestradores,
estupradores, às vezes, por “aliens”; de outro,
aquelas que posicionam o sujeito no controle de uma relação
com uma espécie de escravo amoroso.
No limite, há a tentativa de legitimar o S/M, pois acreditam
e dizem explicitamente que o jogo de poder é central na nossa
imaginação erótica. A noção que
está por trás de tal afirmação é
a de que o sexo entre duas pessoas raramente ocorre em meio a um
patamar igualitário ou de satisfação mútua
em um orgasmo simultâneo. É mais freqüente que
cada parceiro reveze no controle das sensações do
outro. Sem dúvida, essa é uma espécie de naturalização
do erotismo. Como se ele fosse desencarnado de todo um mapeamento
simbólico cuidadosamente tecido em meio a processos históricos
e culturais.
Interessante notar também que os manuais S/M ou o capítulo
sobre essa prática no manual do Good Vibrations apresentam,
em contraste com os relativos a outras práticas, afirmações
mais categóricas e toda uma caracterização
detalhada sobre como definir quem está no controle e quem
está submetido. Além disso, enfatizam a todo instante
o fato de ser essa uma das expressões do sexo seguro. Além
de dizerem, o que eu achei surpreendente, que assim como os “sex
toys”, os jogos S/M não enfatizam o intercurso genital,
os manuais aconselham as pessoas não ingerirem alcool ou
drogas quando o praticam. Há todo um conjunto de normas que
o potencial S/M deve seguir: identificar seus desejos e fantasias;
encontrar o parceiro; negociar a cena; procurar o local adequado
para encená-la; escolher a posição e os personagens;
e cuidar da saúde e da segurança. Essa normatização
está acentuada, pois, nos materiais relativos a esse campo
da sexualidade.
Tenho a hipótese que o pragmatismo que recobre os “S/M
plays” é resultante justamente da premência de
torná-lo politicamente correto, afastando-o da violência.
Desse modo, ainda como uma conclusão descosturada, o silêncio
sobre a violência na sua expressão prático-erótica
mais contemporânea (nos S/M) revela algo que conduz à
necessidade de tentarmos desenvolver ainda mais as nossas reflexões.
As teorias e práticas feministas tiveram por mérito
salientar o sentido da violência de gênero que configura
as relações heterossexuais, incorrendo, por vezes,
em reducionismos e na vitimização da mulher. Algumas
vertentes, em crítica a esses reducionismos, criaram a posição
pro-sex, ampliarando, de modo muito rico, as possibilidades
de pensar novas alternativas eróticas, inclusive, aquelas
que ilustram ou se aproximam de um sentido violento. Elaboraram
uma versão “politicamente correta” do erotismo,
intrigante o suficiente para examinarmos alguns de seus efeitos
paradoxais.
Em primeiro lugar, tentando o exercício de pensar o que
se ganha e o que se perde com essa expressão “politicamente
correta”, ganha-se com a ampliação do escopo
de escolhas e práticas sexuais possíveis. Contudo,
trata-se de uma ampliação que traz implícito
um preço: o deslocamento do sentido da pornografia, perdendo
sua conotação de obscenidade. De fato, noto uma substituição
de significados. O “obsceno”, caro às expressões
eróticas que se desenham em materiais desde o século
XVI, está perdendo lugar para a noção da prática
sexual como técnica corporal que visa o fortalecimento da
auto-estima individual.
Em segundo lugar, como sugeri no correr da análise, o debate
feminista sobre erotismo estabeleceu uma disjunção
entre prazer e perigo, como se para garantir uma fruição
politicamente aceitável, seja possível apagar a violência.
Essa disjunção está ilustrada na proposta S/M
na qual a simulação dos plays, por ser regrada
na forma do consenso, estivesse garantindo o acesso a relações
em que a violência não tem lugar. Ainda é necessário
investigar até que ponto essa noção de consentimento
como ato imediato da vontade não é por demais simplificada.
É preciso pensar mais sobre as implicações
desse tipo de solução, tanto em termos teóricos,
como nas suas conseqüências políticas. De fato,
estamos diante de um quadro que ora reduz a violência a uma
dicotomia entre vítima e algoz; ora, para entender suas difíceis
articulações com o prazer, a desloca para um outro
campo semântico, impedindo que ela possa ser objeto de reflexão. |